segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Crítica de Miguel Real no JL, última edição de 2008

INUTILIDADE E ETERNIDADE DA ARTE

A leitura do romance No Silêncio de Deus, de Patrícia Reis, enfatiza a clássica convicção de que a arte, se pode garantir a eternidade, não salva ou redime a vida.

Narração de duas vidas paralelas, a de uma jornalista em busca das suas raízes e a de um escritor consagrado amaciando o momento da morte, controlando a irrupção desta após a morte da mulher e, no último momento, não resistindo à explosão da doença que o vitimará, acolhendo a morte de boa mente, o romance de Patrícia Reis, extremamente bem escrito, é composto por um conjunto de pequenos parágrafos descritivos, cada um focalizado num acontecimento da intriga ou numa qualidade das personagens. Intervalado por diálogos grafados em itálico (com utilização do discurso directo, mas sem a respectiva sinaléctica), a narração, propositadamente, faz muito lentamente avançar a acção, ou, melhor, a acção avança, mas a história narrada – unidade da acção -não parece que avança.

Com efeito, parte integrante do estilo de Patrícia Reis, No Silêncio de Deus evolui em pequeníssimos círculos nos quais tudo vai acontecendo, embora, de intriga vazia ou bloqueada, nada pareça que acontece. Porventura, o melhor exemplo do estilo de Patrícia Reis é-nos dado, neste romance, pelo almoço entre as duas personagens principais. Com efeito, ao longo deste almoço, preenchendo várias dezenas de páginas, nada acontece de importante e, no entanto, tudo acontece: a solidão de ambas as personagens, a insatisfação de ambos face à vida própria, o desenraizamento social, a luta quase neurótica contra a infelicidade e o fracasso na vida, a interrogação sobre o corpo, a sua beleza e a sua decadência mortal, a fruição angustiante da liberdade individual, sobretudo se afirmada contra a mentalidade colectiva de rebanho e a consciencialização do absurdo da existência face à inevitabilidade igualizante e nadificante da morte. Deste modo, fazendo jus ao seu estilo, grande parte do romance de Patrícia Reis consiste na descrição de acontecimentos da vida quotidiana de quase nula importância (a escolha do menu, os turistas sentados em mesa próxima, os conselhos do empregado…), que nada acrescentam à acção do romance. No entanto, este nada narrativo estatui-se – de certo modo – como a marca narrativa de Patrícia Reis, isto é, a marca da sua singularidade estética no seio do romance português do princípio do século XXI.

Assim, No Silêncio de Deus prima, primeiro, por uma cuidadosa atenção ao pormenor do quotidiano; segundo, por um cruzamento da primeira característica com uma rarificação de acontecimentos – páginas sucedem-se a páginas em que nada acontece (uma raridade altamente positiva no campo da narrativa, actualmente abundante de romances com mil e uma peripécias – imitação servil e destemperada da telenovela ou da série televisiva); em terceiro lugar, compensando a segunda característica, a narração de três ou quatro situações humanas extremas: o escritor e a mulher morrem de cancro, o pai da jornalista morre de cancro, o escritor decide "controlar" a sua morte fora do seu país e fora da medicina convencional, a jornalista busca as suas raízes judaicas em Israel.

No Silêncio de Deus tematiza claramente a questão da inutilidade da arte como instrumento de salvação do autor ou do artista. A personagem escritor, de corpo a padecer de um cancro, salva-se pela arte, expressa nos seus livros; ela, a jornalista, tenta salvar-se pela incorporação na sua personalidade das raízes familiares judaicas; ambos consciencializam que a rotina da vida quotidiana, o trabalho, o casamento, a vida em família, os pequenos gestos, os lances da vida, pouco contribuem para a salvação da vida de cada homem. A conclusão é categórica: não existe redenção para o homem. Por este motivo (quase brutal), No Silêncio de Deus é um romance triste. Guerra (em Israel) e paz (em Portugal) equivalem-se pelo absurdo a que a morte condena a existência. Porventura, apenas a arte garante a eternidade. Porém, em vida, a arte evidencia-se inútil como instrumento de salvação. Em vida, útil apenas o valor da amizade. O Escritor deixa-se morrer pagando com amizade a generosidade dos seus novos e exóticos amigos de Amsterdão; a jornalista – judia – entrega-se ao prazer sexual de circunstância com um árabe na última noite em Israel. Ambos se sabem condenados ao irrefragável domínio do nada: o esquecimento; a jornalista, rapidamente; o escritor consagrado, lentamente, numa luta hercúlea entre a Obra e o tempo. Neste sentido, para a jornalista, só o Nada é eterno; para o escritor, só a Arte é eterna. Sobre ambos, sobre a utilidade e inutilidade da vida quotidiana, paira, soberano e ameaçante, o juízo de Deus (ou da História, ou do Tempo), que, no entanto, apenas se pode experimentar pela sua ausência, isto é, pelo seu silêncio.

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